terça-feira, 20 de outubro de 2009

Pain II


Não sonho. Morro um pouco de manhã e ao meio do dia quando o sol mais queima. Tenho de continuar. Tenho de esquecer. Não aguento mais. Tenho de acabar, matar, recomeçar a viver. Só que estou presa por dentro e as recordações estão presas por dentro e eu agarrada a elas por um nó na garganta e não sei o que devo deitar fora, arrancar, vomitar para que tudo saía de dentro de mim. Saio á noite com definitivos propósitos de não estar sozinha. Mas não encontro ninguém. Pior, encontro alguém que me vem provar sem remissão que não te vou poder substituir tão facilmente porque depois de ti não há senão um deserto de tempo que se estende à minha frente onde tudo se torna insignificante e pequenino. Começo a beber, a fazer mal a mim mesma, porque estou triste e não acredito em nada senão na dor. Quero morrer e não posso e nem sequer tenho coragem para me matar. E quando penso poder voltar atrás, também sei que não é possível porque eu estou num mundo e tu noutro, os dois tão depressa se afastam, e já não somos nós.
Quando as possibilidades se reduzem, a intensidade do que acontece aumenta exponencialmente.
Os homens não se conseguem entregar por completo ao amor. Preocupam-se com o que não estão a fazer. Para eles o amor pode ser um inimigo. Um inimigo á muito derrotado mas do qual ainda têm medo. Para as mulheres o amor nunca é demais. Não atrapalha. Não conseguem viver com uma alma só para elas.
O amor é incorrigível como o sol, como o mar e a areia quando se deitam juntos.
Sempre que penso em ti , a tua imagem avança em desordem no ar, e a minha memória aflita tem pressa de te alcançar, o sangue tem pressa em correr, e antes de te alcançar tremo, sinto pavor em chegar.
O meu coração é a criança a correr para ti e tu desapareces no interior da minha respiração, de uma dança elevada à solidão que faz arder o vento atrás de si. Sempre que penso em ti rogo pela ressurreição do tempo, pela subversão dos dias.
O que guardo de ti é um lenço de pétalas encostado ao rosto e o meu coração minado pelo bater das próprias pancadas. Depois seguirei até ao fim deste tempo desperdiçado.
As pessoas podem morrer por muito tempo, e depois podem voltar. Uma alma pouco é, duas almas são um mundo e tu caminhas enquanto persigo a teu lado e me esqueço do meu nome, e sei que tu desapareces-te de repente por detrás das colinas, sobre a água.
Também se morre de contemplar a morte, que além de grandioso é íngreme o paraíso.
É então que partes.
Anjos cegos cantam a clamar a minha morte. Vejo a luz que chega estrangulada ao lugar de uma paixão terrível.
Tu partes e a tua despedida grava-se para sempre na areia, as coisas em volta respiram devagar, mais lentamente, com tristeza. Partes e escrevem-se as primeiras letras na noite antiga e a lua nasce, e de todos os lados ouço gritos e vejo sangue a correr.
A noite segue de um lado para o outro, as colinas afastam-se para dar passagem à tua ausência, tremo de febre, como se já dormisse e ainda procurasse adormecer, os pulmões cheios de água.
No escuro a pureza mostra melhor a sua maneira de ser, a tristeza bebe-se com as duas mãos juntas. Oiço a noite chegar como uma floresta que avança. Por favor, digo eu, quero levar comigo esta morte dos pés à cabeça.
Pouco importa. O amor era urgente e o mundo inteiro feito de nós dois. Todo o resto era adiado, não importava, ficava para depois. Os melancólicos como eu conhecem estes amparos da alma com os quais a vida se vai arrastando.
A verdade das coisas obriga-me a procurar outra esperança que por sua vez se há-de mostrar como tal, empurrando-me para a vida.
Há coisas que acontecem e não se consegue dizer como aconteceram , sem porquê nem como, que não se espera que venham a acontecer outra vez, das quais se tem muito medo porque levam ao fundo tudo por onde passam.
E no entanto sem catástrofe não se consegue, fica-se a meio, sabe a pouco. Há coisas estranhas.
Talvez se acabem por esquecer, mas de repente voltam com mais força, mais presença.
Toda a gente sabe disto, toda a gente passa por isto, toda a gente cala. Por vergonha, por vaidade, pelo que quer que seja.
Assim se completa e acaba ao mesmo tempo, no mesmo minuto, nem antes nem depois, o amor inteiro que escorre por mim a dentro como uma tinta que não se consegue tirar. A mancha, esta vida de mistura com a morte.
Nunca se sabe o que é para sempre, sobretudo nas coisas do amor. E era uma coisa do amor isto tudo. São tão estranhas as coisas do amor que não se compreendem por inteiro. Tem de se estar sempre a fazer suposições. Nunca se sabe como e até que ponto e até quando. Esta obsessão chega para impedir a vida, o amor pode impedir o amor, amaldiçoá-lo como um espectro. Não foi sempre assim. Quando se perde tudo pela primeira vez fica-se com o terror de perder todas as vezes.
O primeiro amor dá cabo de nós. E o último é sempre o primeiro.
Ou então nada disto. Talvez seja dar demasiada importância ao que o não merece. Talvez a palavra amor seja o subtil instrumento para ajudar a correr o tempo quando ao redor só há desejo e medo e todos os sítios onde se procura refúgio estão em chamas. Talvez seja a palavra mais bela e com ela nos enganemos, pelo mesmo procuramos o engano, não digo em todos os casos, mas nos mais prementes, mais desesperados. O amor que se escreve com as letras iguais da morte.

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