sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Eu e tu, ou eu e eu?!

O primeiro erro que cometi foi ter-me apaixonado por ti. Não sei ainda hoje explicar o que me aconteceu. É como se de repente tivesse saído de dentro de mim própria e assistisse ao desenrolar da paixão que crescia desmesuradamente, sem que nada pudesse fazer para o evitar. Talvez, sem quereres ou saberes, tenhas tocado nos pontos cardeais da minha insegurança e deles se tivesse acendido uma luz que segui, cega e surda, como os insectos numa noite de Verão à volta de uma lâmpada que alguém se esqueceu de apagar. Mas o amor é mesmo assim: absoluto, estúpido e tudo menos sensato.
Ou talvez me tenha apaixonado apenas pela tua imagem e, quando te tornaste real aos meus olhos, te tenha adaptado a um ideal humanamente perfeito, à luz do meu desejo. De qualquer forma, apaixonei-me por ti, e esse foi o erro primordial, o primeiro de todos, provavelmente o único importante. Os outros erros não se teriam dado se este primeiro não tivesse crescido como uma bola de neve no meio de uma avalanche.
Não sei avaliar exactamente o que aconteceu, mas também há tão pouco de exacto na observação dos mistérios mais simples! O mundo, para cada um de nós só existe na medida em que se confina na nossa vida, naquilo que vemos, sentimos, ouvimos, sonhamos, tememos e acreditamos. E cada um de nós encerra o seu mistério que nem o próprio entende. É por isso que ao sermos espectadores da nossa existência, sofremos quando a vemos caminhar para onde não queremos ir, mas assistimos, impávidos e impotentes ao curso natural das coisas.
O segundo erro, e deste assumo toda a culpa, foi não te ter escondido que te amava. Queria-te tanto que pensei que isso te obrigaria a amar-me. Como fui burra e infantil! O amor não se procura. Simplesmente vêm-nos parar ás mãos e só amamos o que é diferente, mesmo que nos pareça semelhante. Tu tens essa diferença que me cativou.
Mas devia ter aprendido a escutar os teus sinais e decifrá-los, antes de me denunciar com os meus, bem menos subtis, bem mais temerários.
Sou uma guerreira, o amor é a minha arma. O meu coração é o meu escudo, avanço sem lança nem capacete, caio e levanto-me as vezes que for preciso, mas não paro nunca. A não ser que o caminho se feche.
Quando te foste embora, naquele dia, percebi que a tua porta se tinha fechado para sempre. António Lobo Antunes (um famoso escritor) diz que quando o coração se fecha faz muito mais barulho do que uma porta, e acredita, oiço ainda o barulho do teu silêncio, como uma pedra encostada à garganta.
Mas serviu-me para aprender algumas coisas, entre as quais que estar quieta também é uma acção. E ao ficar quieta, consegui parar de sonhar, e comecei a viver cada dia um atrás do outro...
Quando sonhamos muito, corremos o risco de deixar de viver neste mundo, passamos para outra dimensão e não raras vezes transportamos connosco aqueles que amamos. E aquilo com que sonhamos, passa a ser o nosso desejo e é em função disso que respiramos, vivemos, adormecemos e acordamos.
Não te sintas tentado a sentir algum tipo de compaixão, lê-me apenas até ao fim, é tudo o que te peço. Só quero que me oiças.
Falta-me a clareza de espírito, por vezes penso tantos que as ideias se misturam numa amálgama disforme e absurda de raciocínios sem fio, mas logo retomo o leme, logo apanho a direcção, como sempre fazem aqueles que amam quando querem perceber em que é que falharam.
É tão fácil julgar os outros! Como se essa tua postura te desse alguma impunidade. Nada nem ninguem é impune diante dos seus próprios erros.
Acabamos sempre por pagá-los de uma forma ou de outra.
Talvez não sintas tudo à flor da pele como eu, que sou feita de coração, nem sei porque é que Deus me deu miolos se nunca os uso para as coisas mais importantes da vida. Tu és frio, cerebral, foges dos sentimentos como uma criança de um cão grande, sem perceberes que tudo começa e acaba nos afectos, e que o mundo é feito de coisas tão simples e grandiosas como o sexo, o amor, a raiva, o ódio e a saudade e que são os instintos mais básicos que fazem o mundo andar, sempre com conflito e luta, sempre e ainda com vontade.
Não renego o amor que tive por ti, mas não aceito a tua intolerância, a facilidade com que julgas os outros, a leviandade com que me condenaste.
Mas não te julgo, nem a ti nem a ninguem. Apenas acredito ou não nas pessoas.
Amei-te de uma forma desajeitada, arrebatadora e incondicional, sempre querendo e desejando o melhor para ti. O melhor só tu mesmo poderás encontrar e hoje estou certa que não passa por mim.
Não é a dor da rejeição que me massacra, é a dor de saber que nada poderá sobrar deste amor. Que a amizade não tem espaço nem voz entre duas pessoas que desconfiam uma da outra com a facilidade de um inquisidor a soldo.
Cada vez mais acredito que amar é dar e tudo o que não é dado, perde-se. E que a amizade é talvez a mais bela forma de amor, porque é gratuita e intemporal, não precisa de promessa nem de carne, não se desfaz com zangas nem se desvirtua com o tempo.
Não te posso dar o meu carinho, o meu afecto, o meu amor domesticado em amizade, se nem sequer tens a grandeza de abrir os braços para a receber.
As mulheres demoram algum tempo a transformar um sentimento em pensamento, tanto mais quanto este é profundo, e no sossego do meu coração, guardo ainda intacto tudo o que sinto por ti.
Com a morte deste meu amor por ti, morre também uma parte de mim, algo cujos contornos não consigo ainda delinear mas que com o tempo perceberei, quando a alma apaziguada fechar as feridas desta minha dor derrotada e passiva perante o teu silêncio e a tua mascarada indiferença.
Mas é melhor que nunca mais se cruzem os nossos olhares, é melhor que a palavras adeus seja mesmo essa e não outra. Chegámos ao fim do caminho. A partir daqui todas as palavras serão inúteis.
Nunca saberei até que ponto ages com o coração ou apenas com a cabeça. Até que ponto te entregas ou apenas jogas. Até que ponto sentes e ages, ou apenas observas. E é por nunca ter sabido quem és, que um dia te conseguirei esquecer.

Hoje

Toda a nossa existência tem por condição a infidelidade a nós próprios. Fui muitas vezes infiel aos outros, mas sobretudo a mim própria, quando me recusava a escutar o meu próprio coração. E tantas vezes o fiz que receei tornar-me igual a quase toda a gente, que sobrevive nesse estado de não existência, sem sequer ter a consciência de como e quão fundo nele se pode estar aprisionado.

Sem saber nem como nem porquê e apesar da minha aparente desorganização caótica, fui mantendo algumas réstias de lucidez que me foram permitindo analisar-me, se não com objectividade, pelo menos com alguma justeza. Se fosse objecto seria objectiva, como sou sujeito, só posso ser subjectiva, não tenho por isso pretensões de alcançar o cerne da verdade absoluta.

Mas, talvez porque sou de mim mesma o meu maior carrasco, posso debruçar-me sobre estas folhas para falar sobre a minha verdade.

Aprendi, a muito custo, que se há alguma verdade, ela está no que se sente, e assim vou viver, até porque entregar a minha existência a outro modo de vida que não seja regido pela franqueza, não faz para mim qualquer sentido.

Olho para trás e vejo com tristeza que os meus erros contaminaram as recordações do tempo em que ainda não os havia cometido e isso faz-me sentir culpada de coisas que não fiz.

Por isso aplico a mim mesma uma espécie de autoflagelação, esperando que a dor infligida apague a original e, quando a segunda se esfumar, pouco mais reste da primeira, a não ser o sabor eterno e amargo de uma perda irremediável. E os erros desfilam, qual parada silenciosa perante os meus olhos.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Os teus olhos











O céu azul, não era

Dessa cor antigamente,

Era branco como um lírio,

Ou uma estrela cadente.

Um dia fez Deus uns olhos,

Tão azuis como esses teus,

Que olharam admirados

A taça branca dos céus.

E quando sentiu esse olhar

«Que doçura, que primor!»

Disse o céu e ciumento,

Tornou-se da mesma cor.


(para a Li (amiga de olhos azuis), que queria um poema) :)


I wanted to..


I wanted to write a poem for you
But couldn't rhyme the words
I wanted to sing a song for you
But couldn't charm the birds
I wanted to see you look at me
But couldn't see your face
I wanted to walk forever with you
But couldn't keep your pace
I wanted to have you by my side
But couldn't find you there
I wanted to hear your voice
The pain was more than I could bear
I wanted to hold you in my arms
Just one more time tonight
I wanted to have you here with me
To know that it's alright
I wanted to look at the stars
But couldn't see past the sun
I wanted to look into your eyes
And tell you you're the one

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Ama-me

Depois de meses de espera, finalmente beijo-o. A boca, a beber-lhe a surpresa das palavras.
Nos olhos, a rever-me na luz que aí permanece. Então, grata, caminho pelo corpo dele, caminho longamente pela lonjura dos infinitos que também me pertencem. Tão solidária deles que grito ao sentir a luz dele entrar-me no sangue. Só tenho de fechar os olhos, sentir as graças brancas de espuma, de sonho e de cansaço, quedarem suspensas dos fios de água iluminada que me escorrem pelos sentidos e aí quedam.....
“Bebe”, disse eu, e senti descer sobre mim a boca trémula dele. À conta de mil silêncios, de mil caladas usurpações, à conta doutros tantos indizíveis terrores, e da ausência, da temível face da ausência, bebe. Preenchendo-me do teu corpo, mitiga a minha sede, aposta no meu sangue. Disponível estou para a febre e o reencontro. Disponível para o encanto do recomeço.
E ele bebe. Quer dizer algo e reaprender os lugares por onde as mãos tecem os casulos do sentir. Os dedos vão sobre a pele, tacteiam, reconhecem. A medo como se temesse imolar-se de pronto no fogo que (sabe-o) irá tomá-lo. Sente, sob si, o meu corpo ajeitar-se ao peso que me vem, e ele sabe que a luz está ali. Percorremos quilómetros de solidões, indecisos como um pirilampo no nevoeiro. E agora, sob a redoma dos corpos, brilha. Sabemos que são estes os caminhos que vão dar ao guardado coração do exílio.
Cato os fios dispersos sob o corpo dele, envolvo-os entre os dedos, acalmo-os sobre a palma, reconstruindo com eles a seda dos murmúrios. De certo modo é sempre uma primeira vez. Agora mais que nunca. Durante as grandes noites de solidão soube que este momento chegaria. Escolhi palavras, inebriei-me com os tontos ardis do amor. Vi-me a reconquistar um sagrado território de prodígios. Perguntei e respondi-me. Programei, cataloguei minuciosa, enternecidamente. De mim a mim dizia: “amo-te” ou “desejo-te”. A palavra rodava-me nos lábios, tinha o perfume intenso doutra boca sobre a minha. E eu repetia-a, até ao cansaço, à exaustão total. Amo-te, amo-te, amo-te. Escrevi nas paredes o som da palavra amo-te.
Bebe, disse-lhe eu. E ele veio com a sua boca e bebeu. As palavras que tinha preparado calaram-se. Nesse momento só a luz, o casulo dela entre as mãos. Não “amo-te” nem “desejo-te”. Só a cor, silenciosa, que delas advém. Senti os seus lábios sobre o meu coração, pequeno, desarmado. É dele que bebe. Bebe, bebe mais e o coração não cansa. É um coração feito de todas as esperanças e de todos os regressos. Enchi com as minhas fontes todas as cisternas do meu corpo. Esperei e recolhi a água das esperas. Desesperei e recolhi o ácido vinho de todas as desesperanças. Contei os minutos, as horas, os dias, os meses, e recolhi o orvalho das manhãs, as chuvas de outono, as lágrimas das noites. É um coração pronto para a saciedade. Digo-lhe que beba, porque preciso que ele beba. Ele, o esperado, o já-vindo, o reclamado. Preciso saciar-me da sua sede e dele recobrar os meus rios. Desejo abrir-me por inteiro, abrir por inteiro o meu coração de mulher, e proclamar a minha dádiva. Guardar para este homem, esta noite, todas as palavras da ternura. Mas, como ele hesita...
“Amo-te” não diz que se ama. Ou , pelo menos, não diz como eu amo nesse momento. E colo a minha boca à boca dele, desejando que seja ele a encontrar a precisa palavra para o reencontro. Toma-me, subjuga-me, sê meu dono e meu servo. São palavras indizíveis. Como indizíveis são: jugula-me, mata-me, renasce em mim. Surpreende-me para que te surpreenda, escraviza-me para que te escravize, esquece para que seja possível relembrar. É um labirinto de palavras e sentires por onde o corpo caminha às cegas. Esperaram tanto que as palavras esqueceram ao que vinham. E olho-o, e morro e renasço ao fitá-lo. Talvez eu tenha os olhos tristes, surpresos de quem pretende iniciar uma longa viagem rumo ao desconhecido e sente já o prazer do regresso. Ou talvez (como adivinhá-lo?) me saiba detentora da explosão que sobrevirá. Bebe, ah bebe. E a sua boca desce sobre os meus ombros, suaviza-me o tremor, embala-me para o vórtice do prodígio. Quero ser a-mais-amante, a-mais-pródiga, a-mais-hábil de todas a mulheres. Quero vangloriara-me (por ele, com ele) do mais inesperado e profundo dos meus espasmos. Como penhor das lágrimas resguardadas, das horas vazias, do sibilar da angústia. Das esperas (tantas!), dos inábeis ardis da esperança. Quero ser tudo – mulher, amante, mãe – e embebedá-lo desta certeza, glorificar-me da sua presença. E a boca, a língua, as mãos tecem os arabescos da ternura adiada, da posse e da dádiva, do grito ainda retido e já pronto a soltar-se, tudo, tudo para que nada reste da afronta e da humilhação e da injúria do pavor. Tudo para que não quede um despojo, um só, deste naufrágio que nos cabe aqui, nesta noite lavada pelo luar, toca-me, beija-me, purifica-me nesta ressurreição do meu corpo, exalta-me até à tua exaltação, cobre-me de todos os espasmos que eu te devo. Ama-me para que eu aprenda o nome do amor. Para que, ouvindo-o, me acalme. Bebe-me. Ou mata-me tão devagarinho, para que depois, pelo respirar da tua boca, aprenda a viver.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Grito



Silêncio!
Do silêncio faço um grito
O corpo todo me dói
Deixai-me chorar um pouco.

De sombra a sombra
Há um Céu...tão recolhido...
De sombra a sombra
Já lhe perdi o sentido.

Ao céu!
Aqui me falta a luz
Aqui me falta uma estrela
Chora-se mais
Quando se vive atrás dela.

E eu,
A quem o céu esqueceu
Sou a que o mundo perdeu
Só choro agora
Que quem morre já não chora.

Solidão!
Que nem mesmo essa é inteira...
Há sempre uma companheira
Uma profunda amargura.

Ai, solidão
Quem fora escorpião
Ai! solidão
E se mordera a cabeça!

Adeus
Já fui para além da vida
Do que já fui tenho sede
Sou sombra triste
Encostada a uma parede.

Adeus,
Vida que tanto duras
Vem morte que tanto tardas
Ai, como dói
A solidão quase loucura.

(Amália)

Pain II


Não sonho. Morro um pouco de manhã e ao meio do dia quando o sol mais queima. Tenho de continuar. Tenho de esquecer. Não aguento mais. Tenho de acabar, matar, recomeçar a viver. Só que estou presa por dentro e as recordações estão presas por dentro e eu agarrada a elas por um nó na garganta e não sei o que devo deitar fora, arrancar, vomitar para que tudo saía de dentro de mim. Saio á noite com definitivos propósitos de não estar sozinha. Mas não encontro ninguém. Pior, encontro alguém que me vem provar sem remissão que não te vou poder substituir tão facilmente porque depois de ti não há senão um deserto de tempo que se estende à minha frente onde tudo se torna insignificante e pequenino. Começo a beber, a fazer mal a mim mesma, porque estou triste e não acredito em nada senão na dor. Quero morrer e não posso e nem sequer tenho coragem para me matar. E quando penso poder voltar atrás, também sei que não é possível porque eu estou num mundo e tu noutro, os dois tão depressa se afastam, e já não somos nós.
Quando as possibilidades se reduzem, a intensidade do que acontece aumenta exponencialmente.
Os homens não se conseguem entregar por completo ao amor. Preocupam-se com o que não estão a fazer. Para eles o amor pode ser um inimigo. Um inimigo á muito derrotado mas do qual ainda têm medo. Para as mulheres o amor nunca é demais. Não atrapalha. Não conseguem viver com uma alma só para elas.
O amor é incorrigível como o sol, como o mar e a areia quando se deitam juntos.
Sempre que penso em ti , a tua imagem avança em desordem no ar, e a minha memória aflita tem pressa de te alcançar, o sangue tem pressa em correr, e antes de te alcançar tremo, sinto pavor em chegar.
O meu coração é a criança a correr para ti e tu desapareces no interior da minha respiração, de uma dança elevada à solidão que faz arder o vento atrás de si. Sempre que penso em ti rogo pela ressurreição do tempo, pela subversão dos dias.
O que guardo de ti é um lenço de pétalas encostado ao rosto e o meu coração minado pelo bater das próprias pancadas. Depois seguirei até ao fim deste tempo desperdiçado.
As pessoas podem morrer por muito tempo, e depois podem voltar. Uma alma pouco é, duas almas são um mundo e tu caminhas enquanto persigo a teu lado e me esqueço do meu nome, e sei que tu desapareces-te de repente por detrás das colinas, sobre a água.
Também se morre de contemplar a morte, que além de grandioso é íngreme o paraíso.
É então que partes.
Anjos cegos cantam a clamar a minha morte. Vejo a luz que chega estrangulada ao lugar de uma paixão terrível.
Tu partes e a tua despedida grava-se para sempre na areia, as coisas em volta respiram devagar, mais lentamente, com tristeza. Partes e escrevem-se as primeiras letras na noite antiga e a lua nasce, e de todos os lados ouço gritos e vejo sangue a correr.
A noite segue de um lado para o outro, as colinas afastam-se para dar passagem à tua ausência, tremo de febre, como se já dormisse e ainda procurasse adormecer, os pulmões cheios de água.
No escuro a pureza mostra melhor a sua maneira de ser, a tristeza bebe-se com as duas mãos juntas. Oiço a noite chegar como uma floresta que avança. Por favor, digo eu, quero levar comigo esta morte dos pés à cabeça.
Pouco importa. O amor era urgente e o mundo inteiro feito de nós dois. Todo o resto era adiado, não importava, ficava para depois. Os melancólicos como eu conhecem estes amparos da alma com os quais a vida se vai arrastando.
A verdade das coisas obriga-me a procurar outra esperança que por sua vez se há-de mostrar como tal, empurrando-me para a vida.
Há coisas que acontecem e não se consegue dizer como aconteceram , sem porquê nem como, que não se espera que venham a acontecer outra vez, das quais se tem muito medo porque levam ao fundo tudo por onde passam.
E no entanto sem catástrofe não se consegue, fica-se a meio, sabe a pouco. Há coisas estranhas.
Talvez se acabem por esquecer, mas de repente voltam com mais força, mais presença.
Toda a gente sabe disto, toda a gente passa por isto, toda a gente cala. Por vergonha, por vaidade, pelo que quer que seja.
Assim se completa e acaba ao mesmo tempo, no mesmo minuto, nem antes nem depois, o amor inteiro que escorre por mim a dentro como uma tinta que não se consegue tirar. A mancha, esta vida de mistura com a morte.
Nunca se sabe o que é para sempre, sobretudo nas coisas do amor. E era uma coisa do amor isto tudo. São tão estranhas as coisas do amor que não se compreendem por inteiro. Tem de se estar sempre a fazer suposições. Nunca se sabe como e até que ponto e até quando. Esta obsessão chega para impedir a vida, o amor pode impedir o amor, amaldiçoá-lo como um espectro. Não foi sempre assim. Quando se perde tudo pela primeira vez fica-se com o terror de perder todas as vezes.
O primeiro amor dá cabo de nós. E o último é sempre o primeiro.
Ou então nada disto. Talvez seja dar demasiada importância ao que o não merece. Talvez a palavra amor seja o subtil instrumento para ajudar a correr o tempo quando ao redor só há desejo e medo e todos os sítios onde se procura refúgio estão em chamas. Talvez seja a palavra mais bela e com ela nos enganemos, pelo mesmo procuramos o engano, não digo em todos os casos, mas nos mais prementes, mais desesperados. O amor que se escreve com as letras iguais da morte.

Pain I

A vida cansada suspira e roga e lança sem ânimo pragas ao fim de um dia...
Acordo com um ferro no coração. Qualquer movimento pode reabrir a ferida. O melhor é ficar quieta. Nada mexe e eu não me mexo.
Fecho-me no quarto com certeza de que isto como o resto, há-de passar. Isto é a dor do ferro, o cansaço que me enevoa os olhos, a falta que em tudo habita, irreversível.
A angústia atingia-me em ondas e, no intervalo, largava-me numa paz logo desfeita para depois recomeçar mais poderosa.
No meu quarto não se ouve o eco da minha dor.
Contei a minha ferida, mostrei a cor do meu sangue. De qualquer modo eu não conseguia dormir.
Fui esmagada no nítido contaste entre o que passa e o que fica, o que tem de ficar.
Fui forçada ao tempo. Rápido como a luz e imóvel como a pedra, a pedra imóvel contra o tempo. Gritei e fiquei surda ao ouvir como as palavras chamam pelas coisas, as dominam por momentos.
Percebi por fim o que já sabia....
No fundo somos todos iguais.
Todos nós sabemos o que é ter medo, todos nós temos ambições e sofremos desilusões, todos vivemos de preocupações que se vão sucedendo, todos sabemos que a vida não se repete, e que para todos, mais tarde ou mais cedo, aquilo a que nós chamamos vida sem saber bem o que dizemos, vai acabar.
E eu sempre absolutamente triste, inconsolavelmente melancólica, á beira das lágrimas, a ver-te sempre que fechava os olhos, irremediavelmente apaixonada por ti, de quem fugia inutilmente, a quem levo comigo sem querer, porque tu fazes parte do meu corpo.
Sofro tantos como os outros apesar de estar convencida que sofro mais. Cobre-me uma escuridão. Amo alguém que não me quer. Julgo que não vou aguentar e aguento.
E de repente, sinto de novo as garras que me torturam cá dentro afastando para longe qualquer prenúncio de alegria.
A dor afasta a dor, eu aprendi.
Eu vou aguentar. Os dias vão passar. Um a um. Tudo se há-de resolver. O ponto em que a morte parecia ter mais sentido do que a vida já passou. Tudo se há-de resolver. Nem que seja á custa da traição e da mentira. Sim, sobretudo isso. Sim, o que será de uma mentira se todos souberem que é mentira. Para aquecer o coração, mais não.
Há quem diga que mais vale só que mal acompanhada. Talvez não concorde. O pior é a solidão e o tédio.
Não sei o que vai acontecer. Por vezes penso que é bom poder voltar mais uma vez à superfície desta terra e adormeço tão suavemente que nem me dou conta que todos partiram...
Carne sobre carne, o peso. Na imaginação tudo corre lentamente. Uma coisa depois outra, nesta ordem e naquela. Quando já não se aguenta, não se consegue, há um alívio breve e é preciso sorrir ligeiramente porque o tempo perdeu a importância. A noite é tão antiga e nunca acaba...
Quem gosta sem razão deixa de gostar pelo mesmo motivo e pode confiar-se em tudo, salvo nos amores. Uma surpresa inesgotável do que não temos nunca, do que não é nosso, está à nossa frente ao alcance das mãos e depois foge e escapa.
Tudo antes da morte ter começado o seu trabalho, se ter apoderado de uma parte de mim e nunca mais me ter largado num combate em que não há vencedores porque ambas as partes estão interessadas em continuar o jogo em que são viciadas.
O choro, a raiva, o pavor fazem estalar a minha cabeça, a traição enlouquece-me durante horas. A única maneira de sobreviver é fazer promessas, imaginar combinações, estabelecer contactos comigo mesma.
É a minha primeira vingança : morro de amor, mas o amor morrerá comigo.
E volto a chorar como no primeiro dia, mas menos tempo.
Tenho uma maré de lágrimas a chegar-me aos olhos que depois recua. Faço muita força com as pálpebras fechadas. Julgam que dormi, calo-me, minto, fujo para longe, para que não me vejam tremer de terror, por causa das pessoas que matei dentro de mim.
Debaixo do céu, uma irremediável tristeza.
Eu pensava naquela tristeza toda, naquela saudade toda, e não parava de chorar.
Pensei que a dor me ia deixar, esta terrível dor que se abriga no meu peito como se não encontrasse outro refúgio.
Foi uma ilusão. Que o que me mostrou de mim fique para sempre enterrado, que nada volte á luz dos dias.
Eu sei que ninguém compreende, mas é o que sinto, que não há maneira de saber ao certo se estou no principio ou no fim, que embora diametralmente opostos se equivalem, que constantemente trocamos vida pela morte e morte pela vida e assim prosseguimos confundidos, que qualquer estado de espírito se mostra insustentável mais do que quinze minutos e passamos a outro.
São coisas que mostram a constância da alma.
Como é natural todo o amor encobre um ódio e se alguma vez fui diferente esse ser diferente esbateu-se com o tempo e não há nada no que sou que possa trair o que fui no passado.
Já andei meses de cabeça perdida. Já houve um tempo em que me feria fundo a beleza de um corpo. Passei muitas noites sem querer dormir, e muitos dias sem querer ver o que se passava à minha frente. Traí e fui traída. Conheci situações adversas mais vezes do que o bom sucesso. Desejei viver e morrer com intensidades tamanhas que certamente por isso se anularam. Conheci o entusiasmos que abate as paredes e o desespero que tudo afoga no escuro. Tudo isso acabou. Tudo isso foi há muito tempo, numa outra espécie de vida. Hoje estou morta. Ninguém espera de mim o que quer que seja, nem saberia encontrar o lugar onde estou.
E eu não tenho outra ambição que não seja a de prolongar por algum tempo esta situação privilegiada em que se espreita o rio da vida com interesse e lucidez acrescidos porque já não se é parte interessada.
Não sei se todos os sentimentos são recíprocos mas gostava de acreditar que sim. Poupavam-se muitos e grande desentendimentos.
Sorvo um cigarro com grandes tragos, e pouco a pouco entro numa espécie de meditação em que tudo o que parece real por fora se esvazia para deixar tornar presente, tão presente que uma angústia toma conta de mim.
É uma necessidade constante travar a vida que se encaminha para a morte.
A bebida e o fumo, em correntes arrastada. Ainda me dói a tua presença dentro de mim...
Sou livre de partir e talvez nunca seja cedo. Esta suspeita toma conta de mim, desanima-me, não me deixa descansar. Não quer que nada seja assim e tudo ser de outra maneira. E depois desisto. É assim, não podia ser de outra maneira.
A verdade é sempre outra no avesso das coisas e trago comigo mais do que uma alma ferida precisada de urgentes cuidados. Houve um tempo em que quis regressar, uma memória, uma saudade que agora é calafrio. Estou nisto há meses, anos, séculos.
Ainda dói no mesmo sítio e nada é por acaso. Não vale a pena continuar em frente, nem sequer para o lado se já não tenho por quem.
Se tivesse coragem atravessava o oceano para sempre, virava costas a este corpo que é cinza, fugia desta língua atroz que me vicia. Mas assim não. Sou perita em perguntas sem resposta e entretenho-me com coisas inúteis.
É tão certo o desfecho da batalha que só pode ser outro o engano.
Preciso muito de tristeza, é bem verdade, uma maneira de descansar os olhos das coisas que insistem em mostrar-se e não merecem nada. Resistir é tão difícil, desgasta. Mas ainda falta.

Simples

Acordar de noite. Não sentir a dor. Ficar quieta. Á espera da dor. Respirar devagar. Abrir os olhos. Primeiro um, depois o outro.
Acordar de noite. A meio da noite. Ninguém a meu lado. Não vale a pena. Ninguém a meu lado. Ficar quieta. Não vale a pena. Ali a meio da noite. Á espera da dor. Enquanto não vem, a pensar que não vem, que não há-de vir, melhor assim. Não vale a pena esperar. Pelo menos esta noite a dor não vem. Sorrir. Abrir os olhos devagar. Primeiro um, depois o outro. Continuar a sorrir. Até a luz chegar. Até chegar. Continuar a sorrir. Até a dor voltar...

.......

...caio no chão, vinda não sei de onde. Lembra-me de me apetecer ali estar, mas agora penso que foi uma má escolha, e desejo nunca mais aqui voltar. Vista de fora, parece mais tentadora, a vida. Enquanto a minha visão se habitua à escuridão, sinto-me cansada, e ainda agora aqui cheguei, e não me lembro de mais nada...Penso em ti, olho para o céu em chamas e penso em ti, e ao mesmo tempo recordo imagens do passado e só desejo que estejas bem onde estás, mesmo que só. Não desejaria este mal a mais ninguém. Olho à volta, há imensa gente, gente a mais para um sítio tão pequeno, para o céu a arder que se sente. Ora estão em grupinhos organizados, vazios entre eles, alheios a este caos, ou perdidos como eu, em silêncio, olhando para o imaginário e revendo a vida, a noite, ninharias. Desligados da realidade. Tento quebrar o silêncio, tento falar... mas a minha voz perde-se no meio da música... grito, mas continuo a não me ouvir... Estou sozinha, sinto-me vazia... a noite que eu venerava virou-se contra mim, e embora a madrugada dos teus olhos seja o que me mantém viva neste momento, desejo ardentemente nunca te ter conhecido, não ter que sofrer assim em silêncio, não ter que amargar sentada no chão agarrada a um cigarro. Berro. Queria-te aqui, por mim, nem que fosse para te olhar em silêncio, como todos fazem por aqui, para secretamente te mostrar o amor que sinto por ti. Para suplicar a esses olhos ternos que me aceitem, que me tomem e me levem para longe, para te amar e esquecer o passado, para expulsar estes fantasmas que me atormentam, para me dar vida neste poço escuro e tenebroso que alguns arriscam chamar existência. Olho de novo para o céu, vermelho sangrento, suplico às estrelas que me roubem... Que bom que seria! Inspiro, suspiro, sorrio e fecho os olhos...


First one

Tudo era mais fácil antes dele entrar no meu mundo.
Era mais fácil pensar quando ele ainda não pertencia à minha vida.
Depois, eu que era tão livre como o mais alto dos pássaros, fiquei presa ao seu sorriso, sem o qual já não podia viver.
Era muito mais fácil viver. Era mais fácil pensar, pensar que compreendia aquilo que lia.
Ler poemas cujas formas de deixavam extasiada. Ler poemas cujas ondas, rimas, versos, música me levavam até alguém que eu imaginava.
Esse alguém era ele, só que não sabia que o verdadeiro seria tão igual ao imaginado, mas que o amor seria tão diferente.
Ele era a minha outra parte, era apenas através dele que eu seria feliz.
Mas fui tão infeliz...



A música ganhou uma nova melodia, tão mais alta1 Os tambores do meu coração começaram a bater tão mais depressa! mais depressa! mais depressa1 E mais depressa ainda quando ele se aproximava.
E tudo mudou... os poemas cujas formas me fascinavam começaram a ser entendidos. A forma ganhou cor, ganhou sentido, a ideia mudou, o sofrimento deixou de ser apenas lido, começou a ser sentido.
Agora espero que o vento me leve esta angústia, como leva as folhas das árvores no Outono, como forma as tempestades no deserto e como vira as folhas de um livro de poesia. Poesia que antes não era compreendida e que agora pode ser sentida.
Mas assim é a vida..
E antes viver cheia desta angústia e saudade que já foi amor e alegria, que morrer vazia apenas com as formas de um poema cantado.
E quem sabe se outro amor virá?! Será que vem?! Deve vir. E depois será que se volta a transformar nesta angústia? Se assim for não vale a pena. Ou será que vale? Talvez não...
Mas se vier também não poderei fazer nada. por mais forma que queiramos pôr ao amor, ele acabará sempre por sem sentido.

Agora escrevo...

Quem sabe se a dor não fica no papel?!
Se assim for, quem sabe se outros não sentirão o que eu sinto?
Ou só apreciarão a forma?
Se já amaram, sentem...